terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Filipe Zau: Ao som da grafonola


Filipe Zau, Dj (Nos finais dos anos 80 no seu apartamento dos Combatentes)

Fotos: Carlos Lousada/ Arquivo de Filipe Zau
As tampas das panelas rodavam feito discos num aparelho de som imaginário. Fechavam-se os olhos e os sons ecoavam por todo o lado. Depois vieram as sessões de mornas e coladeras na guitarra de um primo que “morou lá em casa”. As grafonolas e as rádios pick-up também já lá moravam há muito. Mas isso foi no início, lá bem no início. Pela frente ainda haveria o Clube Marítimo Africano, as festas de finalistas, o agigantar de um novo valor e, por fim, o seu reconhecimento como grande nome da música angolana: Filipe Zau.
Lisboa. Rua José Ricardo, número 11. Com seis meses, o pequeno Filipe Silvino de Pina Zau mudava-se para a casa onde moraria até aos 17 anos e onde lhe foi traçado desde logo um destino: ser músico. Natural da capital portuguesa, onde nasceu a 2 de Novembro de 1950, Filipe Zau trazia no sangue o ritmo das ondas das viagens do seu pai, angolano de Cabinda e marítimo de profissão, e a musicalidade da mãe, senhora natural de Ponta Verde, no Fogo, ilha onde Cabo Verde se ergue num gigantesco vulcão. Terra de mistério.
Única Única criança de uma casa onde vivia com os pais e com um casal, primo da família, Filipe Zau sempre viveu entre  a muita música que saía das aparelhagens que enchiam o apartamento. A primeiro foi uma grafonola à manivela, “daquelas antigas”. Seguiu-se um pequeno móvel pick-upalemão, marca Lowe Opta, que animava muitas vezes as farras do Clube Marítimo Africano. Foi nestas paródias de embarcadiços que, por volta dos sete anos, aprendeu a seleccionar e pôr música. Mas só quando uma nova rádio pick-up, desta vez uma Telefunken, entrou pela casa dentro, é que o pequeno Filipe descobriu a sua vocação. Os aparelhos ficavam ao seu inteiro dispor durante meses a fio, enquanto os homens da casa estavam em alto mar. O seu mundo girava, então, na mesma direcção dos cerca de 400 discos de 33, 45 e 78 rotações que enchiam a discoteca da família. Sempre que o pai e o primo voltavam, “traziam muitos discos novos, comprados nos vários portos do mundo por onde passavam”, recorda hoje.
Filipe Zau, Dj (Nos finais dos anos 80 no seu apartamento dos Combatentes)
Por esta altura, já as tampas das panelas com que imitava a rotação dos discos nas aparelhagens tinham passado à história. Restaram-lhe desse tempo as memórias de sons de todo o mundo: “merengues” de Luís Kalaff e Angel Vilória e “Sus alegres Dominicanos”; boleros de António Machin, Juan Serrano e de Sonora Matancera; rumbas de Célia Cruz; o chá-chá-chá de Tito Puente; tangos de Carlos Gardel; sambas de Carmen Miranda e Ângela Maria: e, mais tarde, as músicas românticas do italiano Marino Marini e do argentino Alberto Cortez.
Tamanho mergulho na música não podia ficar-se pelos tachos. Aos 12 anos aprendeu os primeiros acorde de guitarra com um primo cabo-verdiano que dedilhava mornas e coladeras crioulas. Mas foi aos 15 anos, em plenos “sixties”, que Filipe Zau começou oficialmente a sua actividade musical, durante uma festa de finalistas dos liceus de Lisboa. Era então baterista do “Logos Quintetus”, conjunto do qual mais tarde se tornaria vocalista. O fulgor da música da década que, dizem, mudou o mundo, não lhe passou ao lado. Habituado a ouvir de tudo um pouco, o então jovem estudante do Liceu Nacional Gil Vicente forjava a sua identidade musical ao som de muitas cadências: as guitarradas alucinógenas de Jimmy Hendrix, o rock dos Rolling Stones, o pop dos Beattles, os bluese a soul music, as canções francesas de Françoise Hardi, Silvie Vartin e a música de Franco. É desta altura a sua primeira composição: “tinha três acordes e uma letra em francês. Que me lembre nunca a mostrei a ninguém”.
A partir daí não mais parou. Até 1970 fez parte de vários grupos musicais estudantis que actuavam em festas de finalistas e em centros recreativos, com um repertório recheado de covers dos êxitospop da época. Dois anos depois tornou-se no percussionista do “Blackground”, um grupo ligado ao Duo Ouro Negro. Entre 1972 e 1974 colaborou também em discos de autores portugueses como Sérgio Godinho, Vitorino e Fausto, e de Bana e Luís Morais, músicos cabo-verdianos. Pelo meio ficava a participação na décima primeira edição do Festival da Canção Portuguesa. Com estes projectos musicais em curso, conseguiu ainda terminar o curso do Magistério Primário.
Dirigido por Rão Kyao, “Baga-Baga” foi o conjunto em que Filipe Zau tocou nos dois anos que se seguiram, um período que ficou marcado pela gravação do primeiro single com duas canções da sua autoria: “Fases de Revolta” e “Revolução Guerrilheira”. Anunciava-se a sua faceta de cançonetista político, que assumiria depois da independência de Angola. “Pioneiro Pedrito”, “O fantoche”, “Domingas Kanhari”, “Mulher do meu Povo” e “África Revolução” são algumas das canções que marcaram a sua carreira e aquele tempo.
A partir de 1977, e já a viver em Luanda, a vida de Filipe Zau entrou num ritmo acelerado. Enquanto investia na sua formação profissional em Angola, na República Federal da Alemanha e no Brasil, gravou o segundo single, “Congresso”, e venceu o 1º Concurso Nacional de Música. Representante de Angola no 11º Festival da Juventude e Estudantes em Cuba, compôs ainda quase todas as canções para a representação musico-teatral “África Liberdade” e várias músicas infantis para os programas Rádio Piô e Carrossel, da Rádio Nacional de Angola.
Esta produção intensa foi interrompida em 1984, ano em que viajou para o Brasil para frequentar o curso superior de Pedagogia no Centro de Ensino Unificado de Brasília. No entanto, a música chamava-o com intensidade. Não resistiu ao apelo e ingressou na Escola de Música da capital brasileira. No último ano dos estudos, 1988, fundou o “Tukayana”. Formado por Filipe Zau e por estudantes e professores da escola de música, o grupo viajou por Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato do Grosso do Sul tocando única e exclusivamente música angolana.
Os anos que se seguiram, alternou-os entre Angola e Portugal, onde tirou uma nova licenciatura na área do ensino. Fermentava, então, uma intensa produção artística. 1996 foi frenético. Nesse ano Filipe Zau lançou o primeiro disco, “Luanda, Lua e Mulher” e logo a seguir um CD duplo, “Canto da Sereia – o Encanto”, um trabalho feito em conjunto com Filipe Mukenga e que representou Angola na Expo 98, em Portugal. Ainda em 96 o músico surpreendeu tudo e todos ao lançar o livro de poesia “Encanto de um mar que eu canto”. Foi a primeira incursão no patamar exigente das letras. Entre 2002 e 2005 levaria ainda à estampa “Angola: Trilhos para o Desenvolvimento”, “Marítimos Africanos e um Clube com História” e o livro de poesia “Meu Canto à Razão e à Quimera das Circunstâncias”.  2007 marcará o regresso de Filipe Zau à escrita, com o lançamento do livro de crónicas musicais, “Notas Fora”, pelas editoras Chá de Caxinde (Angola) e Prefácio (Portugal).
Académico assumido (fez o mestrado em Relações Inter-Culturais e o doutoramento em Ciências da Educação, ambos pela Universidade Aberta, em Lisboa), Filipe Zau tem rodado vários países na Europa e América como palestrante em conferências sobre educação. Tamanha actividade intelectual nunca o impediu, porém, de ser músico de corpo e alma. Até porque os seus sons também lhe trazem reconhecimento dentro e fora de Angola. Como aconteceu em 2000, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, quando foi reconhecido como o “melhor compositor africano em língua portuguesa”.
Com a sua esposa
Com a sua esposa
A residir já definitivamente em Luanda com a sua esposa “Lykas”, Filipe Zau continua a fazer da música uma das suas principais actividades. Actualmente é parceiro musical de Filipe Mukenga, Rui Mingas, Paulo Flores, Eduardo Paim, Mário R. Silva, da cabo-verdiana Celina Pereira, entre outros. Também novas figuras da música angolana –  Maya Cool e Paty Faria – cantam as suas composições. Essas canções cujas raízes estão lá atrás, quando Filipe Zau encontrava nas tampas de panelas os sons que só ele imaginava, e que agora o confirmam como um dos maiores músicos angolanos.
in AUSTRAL nº 64, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola
por Mário Rui Silva
Palcos | 16 Fevereiro 2011 |

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