Canta os sons da terra, mas foram os Beatles os responsáveis pelo despertar para os múltiplos jogos melódicos que a escala musical encerra. Com uma carreira reconhecida fora e dentro de portas, Filipe Mukenga faz parte da geração que protagonizou a explosão da música nacional, nos anos 60 e 70, constituindo hoje uma referência incontornável dos que cantam Angola.
Pouco depois da época do cacimbo1 de 1949, no dia 7 de Setembro, Isabel André dá à luz na velha maternidade de Luanda um rapazinho a quem pôs o nome de Francisco Filipe da Conceição Gumbe. As vivências na cidade da kyanda seriam breves, no entanto. Pouco tempo depois do nascimento de Filipe, a família transferia-se de imbamba(s) arrumadas para Masabi, no norte de Cabinda2, onde o seu pai passou a desempenhar funções de enfermeiro. Foi nesta vila, de onde se vê o Congo-Brazaville, no outro lado do posto fronteiriço, que Filipe ouviu os primeiros sons. “Durante os cultos de domingo na Igreja Metodista de Bethel, onde ia com os meus pais, ficava encantado a ouvir o coro da Igreja. Aos poucos fui ganhando o gosto pela música”, recorda.
Aos 13 anos assiste à separação dos pais. Não muito convencido sobre a capacidade da sua esposa em cuidar do filho, o pai leva-o então para Luanda, onde o entrega aos cuidados de Leopoldo Mangueira. É no seio da família deste antigo funcionário das alfândegas que vivia na Praia do Bispo, que o jovem cresce. Afastado dos ecos da floresta de Cabinda e dos coros metodistas, Filipe convive em Luanda com João Silvestre (seria mais tarde o guitarrista do grupo “A Nave”), que lhe ensina os primeiros acordes da guitarra. O contacto com outros músicos e amigos, com destaque para Manuel Zé, filho do falecido nacionalista Belarmino Van-Dúnem, apuram-lhe a técnica.
Actuação em Luanda
Os anos 60 estavam à porta, e com eles um furacão musical que varreu todo o mundo: os Beatles. Os cinco meninos de Liverpool nunca imaginariam o impacto que teriam num jovem de uma longínqua cidade chamada Luanda: “eles foram, sem dúvida alguma, a mola que me catapultou para a arte da combinação dos sons, através da qual expressamos os mais diversos sentimentos”, testemunha o músico.
Nesta década, Filipe entraria num autêntico corrupio artístico. Influenciado pela pop music anglo-saxónica, integrou vários grupos de música moderna que existiam em Luanda – “Indómitos”, do qual foi vocalista, “The five Kings”, com Mello Xavier, “The black Stars” de Gégé Belo, “Rocks”, de Eduardo Nascimento, “Electrónicos”, com Vum-Vum, “Apollo XI” e “Brucutus”,
E é logo a seguir, durante um ensaio com o Duo Misoso, entretanto formado em conjunto com José Agostinho Nvunje, que se dá o clique. De uma forma que até hoje não consegue explicar, surge-lhe na cabeça um nome – Mukenga. Nascia assim o artista Filipe Mukenga.
Em parceria com o que se tornaria um amigo e um irmão, o músico enveredou então por um caminho de “resgate de canções pertencentes a um cancioneiro vasto e rico. Muitas delas foram estilizadas e apresentadas ao público com roupagem moderna onde sobressaiam as harmonias na base das dissonâncias dos acordes invertidos, sons pouco usuais na música africana”. Por esta altura surge também o interesse pela musicalidade das línguas nacionais umbundu e kwanyama.
Duo Mimoso. José Agostinho e Filipe Mukenga na Boite Tamar em Luanda, 1973.
O Duo Misoso foi um marco importantíssimo na carreira de Filipe Mukenga, uma vez que desde o início mostrou ser o veículo de uma sensibilidade para os problemas que então afligiam Angola. Com as dificuldades da época em dar uma tónica politica à arte, lá acabava por conseguir enviar mensagens como “Lavadeira lavando / na selha p’ra ganhar o pão/ velha negra chorando/ vai chorando, chorando em vão…”, a letra de uma composição do conjunto. Mensagens que, mais ou menos subtis, também contribuíram para a independência de Angola, em Novembro de 1975.
Logo após o nascimento do seu país, Mukenga integra o Projecto Kisangela da JMPLA, chefiando a secção de música, onde reuniu os melhores cantores da época. Em 1977 integra o Conselho Nacional de Cultura, organismo que mais tarde daria origem ao Ministério da Cultura. Com a morte de José Agostinho (“um abalo muito grande”) inicia uma parceria com Filipe Zau, que perfaz este ano três décadas.
As canções “Nvula” e “Humbi-Humbi” (letra popular) marcam o salto do nome Filipe Mukenga para além das fronteiras angolanas, muito por mão do cantor brasileiro Djavan, que se apaixona por essas duas músicas em 1980 quando viaja para Angola com outros artistas do seu país no âmbito do “Projecto Kalunga”. Em resposta a esta visita, em 1983, Mukenga integra o grupo “Canto Livre de Angola”, que leva a cultura nacional aos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
Apesar de todas as credenciais que já apresentara e de uma carreira longa, só em 1990 Filipe Mukenga grava (em Lisboa) o primeiro disco, “Novo Som”. Dois anos depois, fixa-se em Portugal, onde permanece 14 anos. Durante esse período não cessa a sua actividade artística. Em 1994 grava “Kia Kianda”, o seu segundo álbum e dois anos depois, também na cidade-luz, participa no projecto litero-musical “O Canto da Sereia”, do qual é co-autor com Filipe Zau.
O Brasil torna-se também, de certa forma, o seu território artístico. Depois de participar na inauguração da Casa de Angola na Bahia (1999), regressa para dar corpo, em conjunto com Ney Mattogrosso, Zélia Duncan e Cássia Eller ao Projecto do Pão Music 2000. Uma nova viagem, nesse mesmo ano, torna-o na grande atracção do vigésimo Festival de Música e Artes do Oludum, também na Bahia. Em Salvador inicia a gravação de Mimbu Iami (canções minhas), que seria lançado em Lisboa e Luanda em 2003, e que contou com a participação especial de Djavan.
Depois da paz, já em 2004, Filipe Mukenga regressa a Angola onde tem a infelicidade de sofrer um acidente vascular cerebral, pouco tempo após a sua chegada. Depois de recuperar totalmente, é nomeado consultor do gabinete do vice-ministro da cultura, função que vem exercendo desde então. A par dessa actividade, a música, sempre a música. Participações especiais como a que aconteceu no disco do cantor-actor brasileiro Maurício Mattar, ou a composição, em conjunto com o inseparável Filipe Zau, da música mais votada pelo júri do Carnaval de Luanda 2007 (“Nossos Reis tinham valor”, do grupo carnavalesco Unidos de Caxinde que, na classificação geral ficou em segundo lugar), marcaram os últimos tempos.
Entretanto, na forja está já o quarto disco, que se chamará “Nós Mesmos”. Um álbum que está a ser gravado também no Brasil, em São Paulo, e que é esperado com ansiedade. Ou não fosse ele um dos valores máximos da cultura angolana, com os seus sons que levam o nome do nosso país pelo mundo fora.
Fotografias: Carlos Lousada/ arquivo pessoal Filipe Mukenga.
in AUSTRAL nº 67, artigo gentilmente cedido por TAAG - Linhas Aéreas de Angola.
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