Sara Chaves nasceu a 5 de Maio de 1932 em Santo António do Zaire (actual Soyo) e foi baptizada em Luanda na igreja de Nossa Senhora do Cabo. Desde os cinco anos revela tendência para as cantorias. No recreio da escola de Anália Castelo Branco (professora competente mas muito severa) canta marchas, fados e outras canções que ouvia no Rádio Clube de Angola. Atraem-na sobretudo as histórias cantadas. “O Médico e a Duquesa”, “A Costureirinha da Sé” e a “Cruz de Guerra”, um fado proibido durante a guerra colonial, são algumas das suas músicas preferidas. “Os artistas portugueses exerceram muita influência sobre mim nos primeiros tempos das minhas andanças pelas cantigas”, revela.
Em 1942 inicia os seus estudos no Liceu Salvador Correia. Em dias de festa, canta récitas com Garda e o seu conjunto. Nas emissões infantis do Rádio Clube e em espectáculos do grupo “Cábulas e Formigas”, em que participa, Sara Chaves mostra uma predilecção pelos cancioneiros português, brasileiro e espanhol. Por esta altura dedica-se também ao teatro amador e à animação de festas particulares realizadas em quintais. Sempre com a sua voz a dar o mote.
Cinco anos mais tarde, em 1947, ingressa no “De tanga”, um projecto de Artémio, Alegria Vidal, Artur Barbosa e Fernando Morais. “O grupo apresentava piadas locais que visavam competir com as companhias portuguesas de revista, que na época visitavam Angola com um repertório fora do contexto. Alguns textos sofreram cortes da censura inerente ao regime vigente. A música era escrita pelo pianista angolano Francisco Gonçalves, que misturava a linha melódica portuguesa com ritmos brasileiros, boleros e rumbas”.
Em 1953 Sara Chaves estreia-se como locutora nas primeira emissões experimentais da que mais tarde se tornaria na Emissora Oficial de Angola. Um projecto liderado por Humberto de Mergulhão e Maria Natália Bispo, que nasce num pequeno quarto contíguo a uma sala de banho, no edifício da direcção dos CTT. Esta experiência apresenta-lhe Alba Clington e o trio Assis.
Em 1959 Sara Chaves actua na R.T.P. e participa no 1º Festival Internacional da Canção realizado no teatro Monumental em Lisboa. Em 1961, começa a cantar composições dos angolanos Eleutério Sanches, Tonito, José Cordeiro dos Santos e mornas de B. Leza. É o princípio de uma viragem na sua carreira. “A música de sabor angolano estava-me na mira. Lembrava-me os tempos em que, nos Carnavais, as danças de museke desciam à cidade baixa e os grupos ‘As lavadeiras’, ‘Invejados’ e o velho ‘Sambo’ cantavam os seus ritmos de batuque em rebita”, recorda.
A partir de então a caminhada pelos sons da sua terra (que defenderia com todas as forças) nunca mais pára. Com o início da guerra colonial, junta-se a grupos que tocam ritmos africanos e cantam em kimbundu “trechos até aí ignorados.” Kyezus, África Show e Massano são os companheiros de ensaios, nos quintais. Conhece também os Negoleiros, Luís Visconde, Minguito e Elias dya Kimwezu.
Ao abrigo de uma lei que beneficiava os funcionários públicos das colónias, desloca-se a Portugal em gozo de licença graciosa. “Como trabalhadora da rádio tinha curiosidade em conhecer outras estações de rádio. Ao mesmo tempo, sentia-me portadora de uma mensagem e sentia que a música podia ser uma das expressões mais válidas da minha terra – já que a política era proibida”, relembra. Grava então um single com quatro faixas. “Impus que fossem canções de Angola: duas do Eleutério, uma do Tonito e outra tradicional.”, conta. Logo em seguida Sara Chaves é convidada para fazer uma nova gravação. “Cubata Distante”, de José Cordeiro, “Kalé ni Muxima”, de Bobella Mota, e o poema “Surukuku”, de Tomás Vieira da Cruz, musicado pelo maestro Joaquim Luís Gomes, passam para registo discográfico, vestindo uma sonoridade “demasiado sinfónica”, que não lhe terá agradado totalmente. De regresso a Luanda, Sara Chaves actua nos programas radiofónicos “Chá das Seis”, “Kazumbi”, “Noites africanas” e “N’gola Cine”.
O reconhecimento efectivo do seu talento chega em 1966, ano em que ganha o prémio de interpretação no Festival da Canção de Luanda, com a famosa “Maria Provocação”, de Ana Maria de Mascarenhas e Adelino Tavares da Silva. As recordações são ainda intensas: “Nessa noite de Setembro de 1966, no cinema Aviz, ouviu-se música tipicamente angolana. O sucesso foi estrondoso, assim como estrondosa foi a decepção quando anunciaram que ‘Maria Provocação’ não podia ser considerada concorrente ao festival, porque a organização não autorizava que os instrumentos típicos do Ngola Ritmos fossem integrados na orquestra. O júri classificou apenas a letra da ‘Maria Provocação’ em 1º lugar e deu-me o 1º prémio de interpretação. Esta música fez uma carreira de sucesso e ainda em 1998 se cantava em Luanda. O duo Ouro Negro gravou-a em Portugal e Martinho da Vila no Brasil.” Para além de “Maria Provocação”, a dupla Ana Maria de Mascarenhas e Adelino Tavares da Silva acrescentaram ao repertório de Sara Chaves canções como “Senhora da Muxima”, “Benguela Rua Nova”, “Ritmo de Coração”, “Sangazuza”.
Em 1972, depois de uma digressão a Moçambique com o Ngola Ritmos (1968), e de ter feito parte de um coral constituído por africanos, retira-se das “cantigas” e assume a responsabilidade pelo sector musical da Emissora Oficial de Angola. Nos espectáculos “Serões para Trabalhadores” põe de novo a música angolana na luz da ribalta. “A música de Angola esteve sempre presente num espaço próprio enquanto realizei espectáculos”, afirma.
Porém, enquanto se assume como um porta-estandarte dos sons angolanos, a sua vida sofre um verdadeiro terramoto. Em 1973, com cerca de 40 anos, é abordada por um desconhecido que lhe pede ajuda. Sem saber, está diante do seu irmão de sangue. Descobre então que é órfã, não oficial, de pai branco da ilha da Madeira e de mãe mestiça nascida em Angola, tendo sido adoptada aos dois anos e meio por um casal de portugueses que sempre pensou serem os seus verdadeiros pais. A partir daí as revelações multiplicam-se: afinal a sua verdadeira avó era a senhora Jerónima – “a velha Tutúri”, como lhe chamavam – que ia a casa dos Chaves fazer costuras e tratar da pequena Sara. Nesta busca incessante da sua identidade biológica perdida, percebe que herdara a vocação musical do pai, que cantava e tocava viola.
Descobertas as raízes familiares, Sara Chaves é apanhada por um turbilhão que a arranca da terra angolana. Em Outubro de 1975 o clima de insegurança que se vive no “seu” Bairro Prenda e em todo o país atira-a para Portugal, com o marido e os dois filhos. Para trás fica uma vida feita de palco e canções: “antes de partir de Angola ofereci os meus ‘vestidos de cantar’ à grande Belita Palma e a outras amigas que ficaram. Deixei as partituras em prateleiras da minha casa no Prenda. Foi o terminar de um percurso que nunca quis atingir.”
Sara Chaves
Regressa a Luanda mais de vinte anos depois, em 1998, a convite da LAC (Luanda Antena Comercial), para presidir ao júri do primeiro festival da canção realizado na capital angolana após a independência. “Rejubilei de contentamento. Tudo o que eu queria era o reconhecimento como artista angolana que fui e como angolana que continuo a ser de alma e coração”, confessa. “Nesta deslocação senti que há uma carga afectiva envolvente, uma relação muito íntima com Luanda, que me impulsiona e me faz sentir inteira. No palco do Miramar cantei e revivi a “Maria Provocação” com a mesma vivacidade de outros tempos – coisa que não poderia acontecer comigo em qualquer outra parte do mundo”. Neste regresso à sua cidade e aos sons que sempre a alimentaram, adivinha traços do passado: “Durante o festival constatei que as lutas são as mesmas de outrora: continua a existir falta de estímulos, de editoras, de espectáculos, enfim, de tudo o que é necessário à existência de um meio artístico.”
Em jeito de confidência, ficam no ar os desejos ainda não realizados: “Gostaria de ter aprendido kimbundu e ter-me dedicado a sério à música da minha terra. Não somente pelo prazer que me teria dado mas porque a sinto intensamente instalada no sangue africano que me corre nas veias.”
in AUSTRAL nº 61, artigo gentilmente cedido por TAAG - Linhas Aéreas de Angola
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