Tinha apenas dois anos quando começou a caminhar, a falar e… a experimentar o alegre sabor do canto. Nascida em 28 de Abril de 1948, em Luanda, de uma gravidez imprevista, a pequena Camilinha (nome de registo, Camila Máxima Pinto de Meireles) cantava e dançava pela casa fora, influenciada pela prima Aninhas (Ana Astrid) e pelas irmãs Ondina e Nina. “Eram elas quem me ensinavam os passos e as canções, e que me incentivavam a mostrar as minhas habilidades aos parentes e amigos (em troca de rebuçados - na maior parte das vezes da Xika Kayoyo - os melhores de que tenho memória)”, relembra.
O talento para as cantorias era de tal forma incontornável, que apenas com três anos Camilinha chamou a atenção de Tito da Assunção, fundador do Grupo Folclórico de Angola. A pequena cantora rapidamente se tornou na mascote desta formação que incluía, entre outros grandes nomes da música nacional, Liceu Vieira Dias, Nino Ndongo (Ngola Ritmos) e Chico Viola (Cinco de Luanda).
O período entre 1951 e 1955 foi auspicioso. Com 4 anitos, e para sua alegria, actuava já nos melhores teatros de Angola. Para além dos aplausos e da chuva de moedas, ganhava sempre um boneco e presentes, condição sine qua non para aceitar cantar e dançar à laCarmen Miranda! Fervilhava já dentro dela o sangue de artista.
Em 1955 interrompeu a carreira precoce (os pais assim a obrigaram) e iniciou a instrução primária na Escola 7, tendo como companheiro de sala o que viria a ser o Rei da Rádio de Angola: João Arsénio! Esses tempos ficaram-lhe na memória: “Entre 1952 e 1957 Luanda tinha uma vida intensa. Havia os maravilhosos Carnavais de rua, com as batalhas de fuba e os grandes passeios de carrinha e camioneta (toda a gente atrás, às vezes até com bancos e cadeiras!); os piqueniques à sombra de cajueiros de Belas, nas estradas de Katete e de Kakwaku, ou em todos os lados onde havia mato; as marchas populares, em que as minhas irmãs sempre participavam, as fogueiras de S. João e S. Pedro. E os concursos das cantadeiras? A minha irmã Nina, que tinha uma voz maravilhosa (tomara eu!), participou em dois, como representante da Maianga, o nosso bairro. Acabou por ser eleita a Rainha das Cantadeiras do Bairro da Maianga, com o lindo fado ‘Quando os outros te batem, beijo-te eu’, de Amália Rodrigues”.
Enquanto a sua irmã se notabilizava nos fados, crescia em Milita a vontade de voltar a viver com intensidade o mundo da música. Embora os pais “nem quisessem ouvir falar nisso”, a insistência da pequena cantora foi tanta que lá acabaram por ceder e inscrevê-la nas aulas de Lili Apanaz, professora de piano na Liga Nacional Africana.
O ouvido e o gosto pelas grandes vozes ia-se apurando. Aos 10 anos Camilinha assumia-se como fã incondicional de Sarita Montiel. Entre as artistas portuguesas admirava Maria Fátima Bravo, Amália Rodrigues e Maria de Lurdes Resende. Já do Brasil, chegavam-lhe, encantadoras, as músicas de Albertino Fortuna, Miltinho, Dalva de Oliveira e Maysa. Mas era o timbre quente da também brasileira Ângela Maria que verdadeiramente admirava, ao ponto de adoptar a quase totalidade do seu repertório. “Nunca a imitei, mas houve uma altura em que me chamavam a Ângela Maria de Angola”.
Finda a instrução primária, Camila entrou para o Liceu D. Guiomar de Lencastre, transitando depois para o Liceu Salvador Correia, onde concluiu o 7° ano. Mas em breve a sua vida sofreria uma revolução que veio, silenciosa, através dos microfones da Emissora Oficial de Angola. Corria o ano de 1961: “uma vez, uma grande amiga falou-me do concurso ‘À Procura de uma estrela”, promovido pelo cantor português Manuel Moreno no programa ‘Gente Nova’. Consistia basicamente numa escola de canto que lançava os seus alunos no mundo da música. Resolvi aderir à iniciativa. Entre 1961 e 1963 passei lá longas e felizes horas da minha adolescência, forjando as qualidades vocais e a têmpera artística A primeira música que cantei foi “Vocês sabem lá”, de Maria de Fátima Bravo. Depois vieram os tangos argentinos e os sons brasileiros de Carlos Gardel, Albertino, Dalva de Oliveira e da minha Ângela Maria. Seguiram-se as canções em francês de Charles Aznavour e Patrícia Carli. ‘Avé Maria do Morro’ e ‘La Mamma’ foram os meus maiores sucessos.” Nascia assim a cantora MILITA.
Foi no “Cazumbi” de Luis Montez (1963), no Cine Miramar, que Milita se apresentou pela primeira vez ao grande público, depois de tantos anos sem pisar os palcos. O sucesso vinha a caminho. Numa das visitas a Angola, o já então mundialmente consagrado Duo Ouro Negro convidou a jovem cantora e Cândida Coutinho a acompanhá-los num programa do “Chá das 6”. A experiência foi tão boa que logo ali lhes lançaram o convite para partirem com eles numa digressão por Carmona (Wíji). “Foi maravilhoso”, exclama Milita ainda hoje.
Actuando em Luanda, 1969. Arquivo Milita.
A sua carreira disparou rapidamente. Em 1964, no VII Festival da Canção de Luanda, foi considerada a cançonetista mais popular de Angola. Até 1966, a sua fama levou-a numa grande viagem pelos cantos mais recônditos do país, em companhia do conjunto “Os Gansos”, da Casa Pia, e de artistas como Manuel Alcobia, João Luis e Maria Judite. Um ano depois obteve o diploma de honra no IX Festival de Canção de Luanda. As actuações sucediam-se a um ritmo alucinante: “cantei um pouco por todo o lado – nas rebitas do Senhor Abrantes, no Clube de S. Paulo, no Marítimo da Ilha, no Ngola Cine e no famoso Colonial o Clo Clo, em espectáculos realizados nos intervalos dos filmes. Tive a grande honra de ser acompanhada pelos grandes maestros Casal Ribeiro e Jaime Mendes e pelo conjunto Ngola Ritmos”.
Cumprimentando Mário Coluna em 1970. Arquivo Milita.
Em 1969 saiu pela primeira vez de Angola. Destino: Moçambique. Foi a primeira de muitas viagens. Nos anos que se seguiram, Milita andaria de malas e bagagens por diferentes cantos do mundo, sempre com a música no coração. A sua carreira tomou outros caminhos. No Brasil, país que a acolheu durante alguns anos, actuou no Double Dose, no Teatro Mundial de São Paulo e teve aulas de canto com Regina Silvares, Márcia Tannuri e Vera Canto Melo. Em 1987 encarnou a personagem “Milita de Angola” no filme “Eternamente Pagú”. Nesta primeira produção cinematográfica da carioca Norma Benguell, a artista angolana contracenou com a actriz Carla Camurati e cantou o Hino da Liberdade (letra de Clara Werneck).
Os anos passaram e novas metas surgiram. Em 1991 Milita pegou novamente nas malas e viajou para a Europa. Também aqui a agenda de espectáculos era apertada. Aula Magna, em Lisboa, e os parisienses Teatro Carré Blanc e Théatre de Draveil foram apenas algumas das salas em que se tornou, por algumas noites, a artista maior.
Mas apesar de tantas voltas pelo globo, Angola ocupou sempre um espaço maior no seu coração. E o carinho é recíproco. Prova disso foi a homenagem que em 1984 a TPA lhe fez no programa “Milita veio e cantou”. Enquanto os holofotes principais a focavam, desfilavam também pelo palco, em jeito de tributo, as vozes de André Mingas, Cirineu Bastos, Dionísio Rocha, Ngoleiros do Ritmo e de Filipe Mukenga e a Banda Madizeza.
Durante esses anos os regressos ao seu país foram uma constante: em Luanda lançou o disco “Eu sou Angolana” (1995) e participou em trabalhos de Eleutério Sanches, Mário Rui Silva, Bonga e Michelino Mavitico. Nos trinta anos da Dipanda participou também na Gala da Independência e integrou a colectânea musical que reuniu os maiores nomes da música nacional. Ainda em 2005 participou em espectáculos de Cesária Évora e Alcione e foi uma das artistas convidadas do “Caldo de Poeira”, para a homenagem ao rei Elias dya Kimwezu.
Arquivo Milita.
Milita vive actualmente em França, onde fundou a Associação dos Artistas Angolanos Residentes naquele país. Como companheiro tem um músico croata que “também dá uns toques de pintura”. Sempre que há uma oportunidade não hesita e sobe ao palco. Ficam as palavras emocionadas: “de cada vez que canto, vivo o instante com o mesmo deslumbramento com que a borboleta vive o seu único dia de vida, pousada numa pétala colorida!”
Fotografias arquivo pessoal de Milita.
in AUSTRAL nº 63, artigo gentilmente cedido por TAAG - Linhas Aéreas de Angola
por Mário Rui Silva
Palcos | 27 Outubro 2010
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