sábado, 14 de janeiro de 2012

Paulo Flores: o talento da utopia

Foi com os versos de Mário António “Noites de Luar no Morro da Maianga” que comecei a imaginar o livro Paulo Flores: o talento da utopia de Gabriel Baguet Jr.
O magnífico exemplar, que o seu autor teve a gentileza de me oferecer, ultrapassou fronteiras, alfândegas, sem carimbos, nem passaporte para vir morar comigo na Maianga, chegou bem protegido, sedutor, quase escondido, através de uma vasta teia de cumplicidades afectivas, passando das mãos do autor para as do Paulo que o transportou desde Lisboa, de onde o seu pai “Cabé” o levou carinhosamente até à Maianga, com açúcar e afecto.
Gabriel Baguet Jr. tem dedicado exaustivamente nos últimos anos todo o seu esforço, toda a sua brilhante inteligência, sensibilidade e vitalidade ao estudo de personalidades e figuras da Nossa Terra - da nossa querida Angola.
A sua volumosa e prestável Fotobiografia de Óscar Ribas, onde com a paciência e enorme criatividade disseca, escalpeliza, os múltiplos aspectos da atraente personalidade do autor de “Uanga” (feitiço) constitui um testemunho inequívoco e privilegiado de um trabalho paciente, sério, isolado, sobre um tema crucial acerca do nosso futuro comum e, ao mesmo tempo, uma homenagem justíssima a um autor verdadeiramente grande – “um cego que nos ensinou a ver”.
Desta vez, sempre atento ao que de melhor acontece no mundo e ao que se passa na Nossa Terra, decidiu homenagear um dos mais criativos artistas angolanos: Paulo Flores.

Paulo Flores: o talento da utopia é um raro exemplar que arquiva numerosa documentação, com destaque para saborosos textos e depoimentos de diversos autores sintonizados com a urgência da verdadeira arte (Carlos Ferreira, Luísa Rogério, entre outros), uma exaustiva discografia, entrevistas com o cantor e compositor e também largas dezenas, algumas muito interessantes, fotografias de Paulo Flores, sua família e amigos, que dão uma imagem, a esse nível, do seu percurso existencial e musical, dos seus lugares de predilecção e afectos, do ambiente dos concertos aqui e lá longe, dos seus amigos e ainda dos seus companheiros e cúmplices de luxo – os músicos notáveis de quem se tem rodeado, comportando ainda vários recortes de artigos de jornais e algumas gravuras.
Um livro de rara alegria para os olhos de Angola que não pode deixar escapar uma lágrima de emoção pela classe e talento de um filho distinto.
A “minha” estória com o cantor Paulo Flores é parecida com as estórias das flores silvestres. Crescem, aparecem, voltam a crescer, escondem-se, surgem teimosamente, mesmo nos carris dos comboios. Por outras palavras: estórias que têm, como na Matemática, “números irracionais” e “tabelas de acaso”. Acontecem. É assim. Coisas insondáveis da vida, “Coisas da terra” - como diz uma canção do Paulo.
Não sei já, com rigor, onde é que foi que nos cruzámos pela primeira vez, que esquina ou avenida, beco ou boteco, terá condicionado as nossas vidas. E o nosso encontro.
Havia (e há) a música entre nós. E do resto, sinceramente, não me recordo com rigor. São já tantos anos…
Lembro – isso sim – de um jantareco improvisado lá em casa, na Maianga, em que se mistura o que vai havendo e se fala das nossas coisas, das nossas esperanças. Ele acabara de chegar de Lisboa onde já trabalhava como cantor e músico. Achei oportuno alargar – nessa noite – o ciclo de amigos e prolongar a fogueira. Convidei o José Manuel Nunes – provavelmente o ser humano que conheço com a maior paixão pela música e por Tom Jobim – sempre ligado a essas coisas bonitas como são a música, o cinema, o teatro, a poesia. Convidei igualmente o Manuel Gomes dos Santos – tremendo ouvido, grande violão, homem que me habituei a estimar desde aquele salto único que se dá entre os calções e as blue jeans.
Nessa noite de uma enorme felicidade, mais do que o panké carinhosamente preparado pela Magui, a música é que era, de facto, o pretexto. E tal como o violão foi passando de mão em mão, a conversa foi fluindo, correndo fácil. A empatia foi-se instalando. E já muito depois do sono dos outros e da tranquilidade da cidade, desembarcámos num simpático clube na baixa luandense onde o Paulo Flores – depois de alguma insistência – varreu, varreu mesmo, dois sembas amparado pela segura Banda Maravilha. Olhe que coisa mais linda, mais cheia de graça…
Dessa noite prodigiosa guardarei ternamente – e com carinho – várias recordações, algumas estórias. E uma constatação: a curiosidade pelo passado e História da música angolana e a humildade que o nosso “convidado” foi revelando à medida que o tempo foi cumprindo o seu inexorável trabalho…., impressionaram-me francamente.

Ainda me lembro – se me lembro – de ter comentado com o Zé Nunes e o Mané Gomes “ se este miúdo continua assim, vai ter futuro, vai longe”.
Anos depois constato que não houve engano. Acertei. Tenho-lhe seguido o rasto e ouvido a música. O percurso recente de Paulo Flores não deixa dúvidas. A sua música convive comigo mais e melhor desde esse encontro e tem sido uma bela amizade.
Paulo Flores ganhou individualidade, aproximou-se mais de uma voz singular – à custa de muito trabalho e de investigação junto dos “mais-velhos”, plenamente consciente de que existem muitos detalhes, muitas estórias, que não estão nos livros e o semba não se aprende na Faculdade, mantendo sempre uma forte ligação à tradição, olhando para o que se vai fazendo noutras paragens, mas interrogando sempre, cada vez mais, o que há-de vir (oiça-se por exemplo “Manico” de Kituxi e Makalakatu, que se mantém actualíssimo).
Não se trata apenas ter de fazer a estrada que não se conhece, mas que se sabe estar ali, mas de fazer-se à estrada, fazendo-a. Como sempre o fizeram os nomes grandes da música angolana: Luís Gomes Sambo, Liceu Vieira Dias e o Ngola Ritmos (o sol da nossa música popular das cidades), José Oliveira Fontes Pereira e o seu irmão Euclides Fontes Pereira (Fontinhas), Catarino Barber, elemento preponderante dos Kimbandas do Ritmo (na época do Botafogo), Rui Mingas, António Pascoal Fortunato (Tonito) - um dos mais inspirados compositores angolanos de sempre -, Eduardo Garcia (Duia) – autor do belíssimo “ Lamento”- referência incontornável e modelo para muitos instrumentistas angolanos, José Cordeiro, inspirado compositor do Lobito, Tchikuto, louvável autor, Moisés Mulambo, exímio criador, irmão do Pincha, um dos maiores cómicos dos anos 1950 e 1960, o guitarrista autodidacta José Viola, Raul Aires Peres (Raul Ouro Negro) que levou – com Milo Vitória Pereira – a música de Angola para o Olympia e para os grandes palcos do mundo e para um estatuto da maior dignidade, as manas Belita e Rosita Palma e Ana Maria Mascarenhas (AMM), brilhantes compositoras. Oiça-se a musicalidade imensa da poética de Adelino Tavares da Silva musicado por AMM. E estudiosos, críticos e divulgadores com profundo conhecimento, tais como Jomo Fortunato, Dionísio Rocha, Amadeu Amorim e Mário Rui Silva.
Entre essa noite prodigiosa e Xê Povo (um dos meus discos de cabeceira), a grande diferença do canto/ música de Paulo Flores foi a sua maior confiança. O cantor que sempre deu a entender ter ideias claras sobre a música, decidiu-se agora desarrumá-las para as tornar mais claras e transparentes. E, especialmente, para tornar-se a si próprio mais claro.
Devo confessar baixinho que sempre desconfiei dos músicos sem memória. Estou convencido que se enganam os músicos que não se interessam nem estudam a sua própria história. As raízes não bloqueiam o crescimento, ajudam a crescer mais forte. Também considero que as influências enriquecem em vez de empobrecer. Tem sido esta a praxis de Paulo Flores.
Uma coisa é ficar prisioneiro, amarrado ao passado, por incapacidade de usá-lo para o futuro. Outra é desprezá-lo, julgá-lo inútil, tornando-o por travão em vez de catalisador; desprezo infelizmente que se vai constatando com alguma frequência entre os músicos angolanos mais jovens, na procura febril do sucesso fácil.
“Nguxi” de Rosita Palma é um excelente exemplo que Paulo Flores nos dá acerca da tarefa fundamental na luta pela memória contra o esquecimento.
Não é necessário conhecer a infância musical de Paulo Flores, saber-lhe o currículo académico e existencial para sentir que a sua voz e a sua música têm memória. O que em termos artísticos em geral – e na música particularmente – é tão importante como saber ouvir os outros.~

Concerto Ex-Combatentes, Lisboa 2008, fotografia Marta Lança

Só assim – nesta envolvente procura no que de melhor se faz “fora-de-portas” e na leitura atenta e crítica do passado-terá sido possível chegar, por exemplo, a Xê Povo- uma obra ímpar, fundamental.
Xê Povo é uma bela crónica em que se misturam palavras, sentimentos, percursos, sons e tantas outras coisas sobre um país onde a pobreza e a riqueza estão cada vez mais ostensivas; crónica musical que necessariamente anda à volta de uma cidade: Luanda – uma beleza à beira do abismo.
Xê Povo é um Blues. Um CD que arrebata, sem arrebatamento, que se reforça e renova a cada audição. É uma longa estória saturada de makas, tristeza e de esperança. É Belina, de Artur Nunes. Também é Nguxi, de Rosita Palma. Mas sobretudo é Xê Povo, a mensagem de vida de Paulo Flores:
“…Olha só tanta poeira nas calinas do muangolê
Olha só tanta poeira nas kinamas do muangolê
Olha os buracos da estrada nos caminhos do muangolê
Olha a força da chegada no destino do muangolê…”
Xê Povo é, enfim, a esperança que cresce do desassossego.  
Xi da Muxima, Saravá Paulo Flores.
Daí a urgência deste Talento da Utopia.
Paralelamente à sua trajectória académica, de jornalista e de intelectual empenhado, Gabriel Baguet Jr. conjuga de forma ímpar na sua obra – infelizmente pouco reconhecida- a defesa da memória cultural angolana com a aceitação dos temas e desafios urgentes que a mundialização das nossas vidas comporta. Paulo Flores: o talento da utopia é também um testamento da vida e dos nossos percursos e uma prova indesmentível que Gabriel Baguet Jr. - autor e coordenador deste belíssimo exemplar - continua a defender esta necessidade imperiosa para a nossa sobrevivência enquanto cidadãos deste mundo e desta Terra: “Vamos descobrir Angola”.
por Jerónimo Belo
22 Fevereiro 2011 | gabriel baguet

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