segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Ícones da Cultura na luta pela independência

Fonte: O País

Em 1972, na Holanda lança o seu primeiro álbum “Angola 72”, onde canta a revolução e o amor à pátria. É por esta altura que passa a chamar-se Bonga Kuenda

Bonga

O embaixador da música angolana

Barceló de Carvalho nasce a 5 de Setembro de 1942, em Kipiri, na província do Bengo. Filho de Pedro Moreira de Carvalho e de Ana Raquel, Barceló é o terceiro filho de uma família composta por mais nove irmãos. A família tratava-o carinhosamente por Zeca. A sua infância foi passada em bairros como os Coqueiros, Ingombota, Bairro Operário, Rangel, e Marçal. Aí vive-se um ambiente intimista de preservação das músicas e tradições angolanas, marginalizadas pela dominação colonialista presente na época.

O folclore dos musseques cedo fascinou o pequeno Zeca e por isso começou a frequentar e a participar as turmas dos bairros típicos de Angola, onde iniciou a sua actividade musical. Foi no bairro do Marçal que fundou o grupo “Kissueia”. Barceló resolve criar o seu próprio estilo musical, afirmando a especificidade da cultura angolana, numa época muito conturbada.

Bonga é produto de uma geração aguerrida e marginalizada que resiste à aculturação da sociedade marginal através do respeito pela música tradicional de Angola. A cultura angolana era dominada pela colonização portuguesa de então, daí que tanto as línguas como a música tradicional fossem descriminadas e impedidas de se manifestar em plenitude.

Exímio corredor

Barceló sempre se sentiu atraído pelo atletismo. Tudo começou ainda muito jovem quando revelou perante os seus amigos do bairro ser o mais rápido nas corridas e nas fugas. Depois começou oficialmente a correr no S.

Paulo do Bairro Operário, rotulado pejorativamente como o “club dos pretos”. Ingressou no Clube Atlético de Luanda.

Em 1966, com 23 anos de idade, depois de ter alcançado os maiores títulos de Angola em 100, 200, e 400m, a sua entrada em Portugal dáse aquando de um convite do Sport Lisboa e Benfica, que se deveu às suas múltiplas vitórias nos campeonatos em Angola. O objectivo deste convite é a prática semi-profissional de atletismo. É entre 1966 e 1972 que Barceló de Carvalho atinge por sete vezes o estatuto de campeão e permanente recordista de atletismo.

Portugal era então regido pela política repressiva e fascista de Salazar e Caetano. Com o início dos movimentos a favor da independência das ex-colónias portuguesas, Bonga usa a sua liberdade de movimentos proporcionada pelo seu estatuto de atleta recordista para passar mensagens entre compatriotas que lutam pela independência em Angola. Por este motivo é obrigado a fugir de Portugal para a Holanda.

Em 1972, na Holanda lança o seu primeiro álbum “Angola 72”, onde canta a revolução e o amor à pátria.

É por esta altura que passa a chamarse Bonga Kuenda que significa aquele que vê, aquele que está à frente e em constante movimento. “Angola 72” está por esta altura proibido em Portugal e Angola, pela sua ressonância política e consciência crítica.

Anos 80 de ouro

Bonga actua pela primeira vez nos Estados Unidos em 1973, aquando da celebração da independência da Guiné-Bissau. Dá-se o 25 de Abril e o artista lança “Angola 74”. Nos anos 80 torna-se o primeiro artista africano a actuar a solo no Coliseu dos Recreios, símbolo da música portuguesa; é o primeiro africano Disco de Ouro e de Platina em Portugal. O seu sucesso estende-se para lá das fronteiras lusófonas, actuando em países como EUA, França, Suíça, Canadá, nas Antilhas, em Macau, etc., ganhando por isso o estatuto de embaixador da música angolana.

Em 1988, quando regressa a Portugal, dezassete anos depois de ter fugido clandestinamente, Bonga aparece não como recordista do atletismo, mas como recordista de vendas e popularidade, que canta música de intervenção, revolucionária e carismática. Um dos motivos pelos quais Bonga não regressa definitivamente a Angola é porque a independência pós-colonial desintegrou-se em corrupção, tirania e guerra. Assim sendo, manteve uma aguda consciência crítica relativamente aos líderes políticos de ambas as partes.

Bonga recebeu inúmeros prémios de popularidade e homenagens, onde conta com distinções varias, medalhas e discos de ouro e de platina. Tem mais de 300 composições da sua autoria, 32 álbuns, seis videoclips, sete bandas sonoras de filmes e álbuns com inúmeras reedições em todo mundo. O artista tem manifestado inúmeras vezes a sua solidariedade e altruísmo, dando concertos de beneficência para várias instituições.

Com mais de trinta anos de carreira, Bonga é convidado para muitos espectáculos no mundo inteiro, promovendo a imagem de Angola.

Lourdes Van-Dúnem
A voz de cristal

De nome completo Maria de Lourdes Pereira dos Santos Van-Dunem, a artista nasceu em Luanda, aos 29 de Abril de 1935. Começou a cantar no colégio ainda muito jovem e aos poucos foi-se evidenciado. O nome Van-Dunem vem de um holandês do tempo de Salvador Correia. Os pais de Lourdes eram pessoas com posses, sendo uma família conceituada em que não se falava kimbundo, devido à pressão colonial. Quem o falasse era colocado à margem da sociedade.

Nos anos 50, acompanhando a tendência dos restantes países africanos, começavam a surgir os primeiros movimentos pró-independência em Angola. A música era o melhor veículo para difundir a mensagem do direito à autodeterminação, mas para isso era preciso ganhar a confiança do poder colonial para poder actuar em grandes espectáculos organizados dela administração local.

Lourdes Van-Dunem, ou “Tia Lourdes” como era carinhosamente tratada, iniciou a sua carreira musical no conjunto “Ngola Ritmos” ao lado de Liceu Vieira Dias, José de Fontes Pereira, Amadeu Amorim e Belita Palma, considerados precursores da música angolana e artistas da luta anti-colonialista. Surge no meio artístico pela mão do grande “mestre” Liceu Vieira Dias, primo de seu pai.

Liceu foi fundador dos Ngola Ritmos, que são um verdadeiro mito da música tradicional angolana. Liceu convenceu o pai de Lourdes a ir aos ensaios dos Ngola Ritmos, tornandose a voz feminina do grupo. Mas a maioria dos membros do Ngola Ritmos eram militantes clandestinos, e em 1959 Amadeu e Liceu são presos e

levados para o campo de concentração do Tarrafal (onde ficam durante 10 anos).

O conjunto é desmembrado por uns tempos, mas Nino, Fontinhas, Xôdo, Zé Cordeiro, Lourdes e Gégé conseguem manter o grupo que, em 1964, foi a Lisboa actuar para a RTP, onde gravam dois espectáculos, um de Folclore Angolano e outro de Música Portuguesa. Nesse mesmo ano gravam dois discos para a etiqueta Alvorada e um outro para a Decca.

Com os Ngola Ritmos a cantora efectuou várias digressões por Angola e Portugal e gravou o seu primeiro disco “Monami”.

A voz de cristal de Lourdes não ficou indiferente ao público português, sobretudo na brilhante interpretação de “Monami”, valendo-lhe um certo reconhecimento em Lisboa. Algum tempo depois, juntamente com Belita Palma e Conceição Legot, cria um trio feminino. Aprende o kimbundo e mais tarde prossegue a sua carreira a solo, compondo e cantando com os Gingas, os Kiezos, os Jovens do Prenda.

O acidente de 1975

Além da sua carreira musical, trabalhava na rádio, até que em 1975 Lourdes sofre um trágico acidente que lhe queima quase toda a cara. “Não queria aparecer, pensava que as pessoas, em vez de ouvir a minha voz, iam reparar nas mazelas,” disse uma vez. Após longos anos de silêncio, recomeçou a cantar, gravando com Yousson N’Dour e Papa Wemba.

Durante a sua carreira musical, Lourdes Van-Dúnem actuou também no Brasil, África do Sul, Argélia, França, Espanha e Zimbabwe. Ela participou igualmente no projecto “So Why” do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) ao lado dos músicos senegalês Youssou N’dour, congolês Papa Wemba, nigeriano Lagbaja e dos sul-africanos Lucky Dube e Jabu Khanyile. A campanha do CICV, que incluiu a gravação de CD, videoclip, documentário e publicação dum livro teve como objectivo principal promover o respeito das vítimas da guerra e da violência política.

Em 1997 grava o disco “Ser Mulher”, onde vinca bem o papel da mulher na sociedade Angolana e nos direitos que têm que ser conquistados. Actua por diversos países, alcançando grande sucesso com os temas de outros tempos, como “Ngongo ya Biluka”, “África”, “Twenza Wê”, “Uxidi” e “Mwa Belela”.

“Tia Lourdes” que também era florista recebeu a coroa que a consagrou como rainha das vozes femininas de Angola a 2 de Agosto de 2003, para assinalar 50 anos de carreira artística. Faleceu subitamente, no dia 4 de Janeiro de 2006, aos 71 anos, numa clínica em Luanda, vítima de febre Tifoíde, deixando o panorama musical angolano de luto. Lourdes VanDúnem deixou uma filha.

Teta Lando
Uma vida dedicada à música

Filho de um rico fazendeiro do Uíge, descendente da família real do Reino do Congo, Alberto António Teta Lando nasceu em 1948 em Mbanza Kongo (antiga capital do reino do Kongo), actual capital da província do Zaire.

Cantor e compositor, cresce numa família que reúne 32 irmãos. Em 1961 com apenas 13 anos, vê o pai ser cruelmente morto no início das lutas pela independência. Uma memória traumática que marcará a vivência da sua vida e que soube transformar em músicas vanguardistas que inspiram para a necessidade de Paz, Irmandade e União do Povo Angolano.

Começou a sua carreira artística nos anos 60, actuando em festas escolares e de fim de ano. Escreveu a sua primeira música em língua nacional Kimbundo, em 1964, intitulada “Kinguibanza”. Deu o salto para o “estrelato” entre 1965/66, altura em que grava o seu primeiro Long Play (LP). O primeiro disco é um sucesso, obtendo o 1º Disco D’ouro em Angola em 1974, colocando-o logo entre os melhores músicos angolanos.

Foi um dos membros fundadores do agrupamento Merengues, tendo passado igualmente pelo grupo África Show. Porém, forçado pela Guerra de Independência em 1974, vê-se obrigado a exilar-se, viaja pelo mundo inteiro e instala-se em França durante mais de 20 anos, onde brilha profissionalmente. Viveu, de 1978 a 1989, em Paris, onde se tornou num dos grandes defensores e impulsionador da música angolana de raiz.

Na longa carreira obteve êxitos inesquecíveis como “Eu vou voltar”, “Um assobio meu”, “Negra de carapinha dura” e “Funge de Domingo”, entre outras canções de referência do music hall nacional, Teta Lando fixou-se definitivamente no país em 1989, depois de ter participado no Festival Nacional da Cultura (Fenalcut), no Estádio Nacional da Cidadela, em Luanda.

Ao longo de mais de vinte anos de carreira, aprendeu a lidar com o som, tendo enveredado pela carreira de empresário cultural, com a pretensão de promover valores talentosos que podiam dar seguimento ao testemunho que retrata a sua vida de músico, compositor, empresário, de um homem ligado à cultura. Para tal, criou a Makino e a Teta Lando Produções, empresas responsáveis pela produção de vários trabalhos discográficos de artistas e grupos musicais angolanos.

Promovendo a Dignidade e Irmandade no seio dos artistas, é eleito em 2006 Presidente da União dos Artistas e Compositores, cargo que ocupou até à data da sua morte. Como resultado, viu realizado um “velho” sonho com a atribuição, pelo Governo angolano, da Pensão de Reforma aos artistas com 35 anos de carreira ou mais de 60 anos de idade. Morre em 2008 em Paris, na sequência de um Cancro do Pulmão. Além de vários LPs, o artista deixa um legado onde se incluem os discos compactos “Esperanças Idosas” e “Memórias”, este último uma colectânea de músicas escritas ao longo dos seus mais de 20 anos de carreira.

Viteix
Um ícone das artes plásticas

Pintor angolano, Viteix, nome artístico de Vítor Manuel Teixeira, nasceu em 1940. Estudou Artes Plásticas em Angola e Portugal, tendo ido depois para Paris, onde concluiu, em 1973 o mestrado em Artes Plásticas. Iniciou a sua carreira docente na Escola Industrial de Luanda e após a independência de Angola orientou o primeiro curso de instrutores de artes plásticas no “Barracão” e, mais tarde, na União Nacional de Artistas Plásticos (UNAP).

Em 1983, doutorou-se em Artes Plásticas de Angola. Membro fundador da UNAP, onde foi secretáriogeral, entre 1987 e 1989, e membro da Associação Internacional de Críticos de Arte, Viteix é considerado um dos maiores artistas angolanos pós-independência. As suas obras estão representadas em vários países do mundo. A sua pintura expõe um universo de memórias com registos de cor e forma que possuem uma forte afirmação mitológica claramente africana.

Na sua Tese de Doutoramento que defende em Paris, o autor afirma o autor que: “(...)Não deveremos deixar de considerar as Artes Plásticas angolanas no âmbito da Arte tradicional ou da tradição africana, na qual a Arte sempre foi a linguagem do homem negro, assumindo por vocação o universo das coisas criadas pelo génio humano”. Num contexto sociocultural e politicamente marcado pelas lutas contra o colonizador – onde se multiplicam as influências dos movimentos nativistas importados do Brasil – Viteix defende a emergência de uma expressão artística fiel ao colectivo e radicalmente nova. Advoga o regresso à história e às “marcas da oralidade dotadas de carácter material”, a fim de contribuir para uma maior consciencialização identitária.

Defensor da cultura africana

Paralelamente à sua trajectória académica e intelectual, desde cedo que Viteix conjuga na sua obra a defesa da memória cultural africana com a aceitação do desafio colocado pela sua formação e vivência europeias.

Desde finais de 40 que integra a jovem geração de intelectuais angolanos defensora do programa “Vamos descobrir Angola” e, na sequência da sua oposição à ordem colonial estabelecida, vê-se obrigado a partir para França.

Tendo começado por entender a arte como exercício plástico e discursivo de reintegração e ruptura, Viteix rejeita a expressão vazia do chamado realismo socialista e escolhe repensar a arte como lugar de resistência à aculturação. Em Angola, tanto quanto pelo mundo, o pintor questiona o próprio conceito de arte africana que assim nos surge não como reserva passiva mas sim como matéria móvel, socialmente tratada, onde a memória actual se detém e informa.

No seu regresso a Angola, em 1975, o autor passa a aliar o exercício da arte à acção sociocultural como responsável pela Direcção das Artes Plásticas.

Inova programas e metodologias de ensino, cria ateliers destinados aos jovens artistas onde defende e pratica a educação pela arte, condenando em tom manifesto o provincianismo cultural e a mediocridade. Contestou activamente as estruturas formais e os modelos da representação figurativa desde o início do seu trabalho, tal como o demonstram algumas das suas obras de finais de 50.

Na arte como na própria vida, o autor viajou entre o plano mítico e a dimensão histórica. Viteix faleceu a 10 de Maio de 1993, deixando atrás de si uma legião de seguidores.

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