sábado, 18 de fevereiro de 2012

DUO OURO NEGRO: "RAUL E MILO"

 


A 4 de Junho de 2006, desaparecia a segunda metade do Duo Ouro Negro,um dos três nomes (os outros dois são Eusébio e Amália Rodrigues) que nos idos de sessenta lograram dar a conhecer Portugal aos quatro cantos do mundo. Apenas porque tinham qualidade, demasiada qualidade para ficarem restringidos a este pequeno rectângulo à beira-mar plantado, onde, já nesse tempo, a inveja e a mesquinhez reinantes eram incompatíveis com uma carreira nacional de grande sucesso. Por isso Raule Milo se fizeram à estrada, levando a sua música a ouvidos mais limpos e a mentes mais arejadas. Fizeram bem, até por usarem Portugal unicamente como trampolim. Afinal aquela música nada tinha a ver com o fado ou o folclore lusitano, e só por circunstâncias políticas da época se poderiam confundir.


Em Fevereiro de 1974, entrevistado por Regina Louro para a revista «Flama», Milo apontava, com algum sarcasmo, algumas razões para há muito tempo não actuarem em Portugal: «Quais são os artistas portugueses que têm actuado aqui? A verdade é que não há um sítio, uma casa de music-hall para cantarmos. Os teatros têm os seus elencos, os cinemas o que querem é vender filmes, a televisão contrata como vedetas cançonetistas que lá fora ficam num plano inferior a nós. Ao artista português mais não resta do que esperar pelo Verão para ir a feiras, festas na província, ou a um ou outro casino nas estâncias balneares. Fora desse período está condenado a uma carreira internacional».

UMA MIRAGEM

Houve um tempo, um tempo breve, em que pareceu que a música popular portuguesa podia ser assim: uma coisa intercontinental, afro-europeia e euro-africana, que pregava um estilo de vida dominado pela elegância e a alegria; atenta às mudanças do mundo e a cada uma das novas tendências internacionais; ecuménica, capaz de acolher no seu seio a memória do antigo reino dos Kwaniamas enquanto gerava luminosas versões de canções dos Beatles cantadas em português e acotovelava as grandes estrelas da época, como Eartha Kitt, Peter Ustinov, Maria Callas, Charles Aznavour ou Gina Lolobrigida. Houve um tempo em que o Duo Ouro Negro, que nasceu no sul de Angola na segunda metade da década de 50, de lá saíu como uma estrela cadente, para fazer escala em Lisboa antes de partir em direcção a outras e mais vibrantes constelações. Houve um tempo em que pareceu que Angola ia ser assim.
Sendo originalmente um trio, foi já como duo que Raul Indipwo e Milo MacMahon - então conhecidos ainda com os seus nomes lusitanos, Raul Aires Peres e Emílio Pereira – se tornaram conhecidos graças às suas espantosas harmonias vocais e a um domínio exímio da guitarra. A princípio projectavam apresentar um elenco do folclore angolano e das suas várias etnias e línguas. Mas a canção que foram estrear ao Cine-Teatro Restauração, em Luanda, e que se tornou o seu primeiro grande êxito, já havia excedido esses limites. No seu registo impressionista e misterioso, «Kurikutela», cujo nome significa «comboio» e celebra o veículo de ferro onde «Toda a gente leva pressa/ de chegar à sua terra/ Estão os parentes à espera» ainda hoje se dá a ouvir como um caso à parte.

Após o êxito conseguido na capital angolana chegam a Lisboa em 1959 pela mão do empresário cinematográfico Ribeiro Belga e, apesar da concorrência em voga no mundo da canção, conquistam em absoluto o público com actuações no Cinema Roma e no Casino Estoril, gravam três discos (inicialmente acompanhados pelo conjunto de Sivuca, depois pela orquestra de Joaquim Luís Gomes), passam pelos écrãs da RTP (onde nessa época se actuava sempre em directo) e regressam a Angola pouco antes do eclodir da guerra, em 1961. Até 1985, ano do falecimento de Milo (a 20 de Fevereiro), decorrerá então o período efervescente do Duo Ouro Negro, marcado por diversas fases e pela polarização do reportório (como todos, submetido à vigilância da censura prévia) entre os registos pop mais inanes e lustrosos de romantismo radiofónico, e outras canções que, não sendo de intervenção política, serão no mínimo de intervenção ideológica. O próprio ano de 1961, em que publicam «Garota» («...se eu beijar sua boca/ Deixará de ser garota/ Passará a ser mulher») e «Mãe Preta» (uma canção espantosa que fala da escravatura glosando a melodia do «Barco Negro» cantado por Amália) é um bom exemplo deste estado de coisas algo esquizóide: celebrados como verdadeiros ídolos em Angola – e ali impedidos pelo censores de interpretarem em palco parte do seu reportório – a presença mediática que conquistaram na metrópole fez com que aqui fossem olhados como um novo trunfo do regime, a garantia de que, apesar da guerra, a existência de um Portugal pluricontinental, como «muitas raças, um só povo» era um dado indesmentível.

O que não pode ser desmentido, porém, é que o verdadeiro trunfo do Duosempre foi a perspicácia e a actualidade da sua visão africanista, que também poderemos interpretar como uma fidelidade às origens. E isto apesar dos triunfos internacionais que lhes surgem pela frente logo na primeira metade dos anos 60, quando percorrem o norte da Europa e de lá regressam com versões em português dos Beatles («Agora Vou Ser Feliz», em 1964, com nova letra sobre a melodia de «I Wanna Hold Your Hand») e de Charles Aznavour («La Mamma») - antes ainda das actuações no Olympia parisiense (1965), das galas para os Príncipes do Mónaco (1966), do convite para o primeiro grande espectáculo televisivo da UNICEF e das primeiras actuações no Rio de Janeiro (1967). Estas últimas motivaram aliás nova explosão criativa, de início patente em temas como "Quando Cheguei ao Brasil": «Minha terra era Cabinda/ No Maiombe eu nasci/ Meu cantar era marimba/ Antes de vir para aqui// Quando cheguei ao Brasil/ Sem a minha liberdade/ Quando cheguei ao Brasil/ Tudo em mim era saudade». Era a celebração da diáspora africana, mas também o início do período afro-latino, que ao longo dos anos daria origem a temas como o espantoso «Moamba, Banana e Cola» (1969, com a orquestra de Jorge Leone), «Iemanjá» (1971), ou o encíclico «África Latina» (1979).
Comparativamente, a longa digressão pelo Extremo Oriente – a que o Duose remete na primeira metade dos anos 70, após a sua exibição na Expo de Tóquio – não parece ter deixado grandes marcas no reportório que praticavam. Mais do que a miragem do que o nosso passado comum poderia ter sido, é a história de uma miragem de futuro, também ela invulgar, e que pode sintetizar-se, afinal, em breves linhas: «Sou da África Latina/ Sou do século 21/ Nossa gente está por cima/ Todos juntos somos um». É a grande vantagem das canções.

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