Há seres humanos que acabam por deixar de pertencer aos seus familiares e passam a pertencer a todo um povo, André Mingas foi um deles. Continuará a sê-lo enquanto viver na memória da sua música e a preencher espaços das nossas vidas com a harmonia da sua obra.
Na hora da partida, aos 61 anos, André Mingas deixou suspensa uma nota musical que pôs os angolanos a cantar, um pouco como se cada um dissesse presente! Eu sinto esta música.
“Sentimos no teu canto de violão sincopado, tantas vezes igual ao teu e cada vez mais igual a ti mesmo, a eterna majestade de um rei de coroa de sonhos e manto de charmes que tivemos o privilégio de ter emprestado de Deus durante 61 anos”, leu-se no elogio fúnebre. E este empréstimo levou André a, nas palavras do amigo Reginaldo Silva, saber “influenciar e alterar positivamente, como poucos, o curso normal dos acontecimentos”.
UM SORRISO QUE É UMA MARCA
“E superaste na mestria de sorrir camuflando sabe-se lá que pesares… Sorrisos de fazer bem à alma alheia que deixam como rastro uma lembrança bonita: não nos lembramos de ti com outra aura que não tenha sido a da beleza e da gentileza”. Esta passagem, igualmente lida no elogio fúnebre, acaba por ilustrar aquilo que é a imagem que André soube passar de si para a família e para a sociedade. Soube passar e soube ser. Um homem que sabia sorrir. Provavelmente será esta a imagem que o manterá presente para sempre.
Sabe-se que André Mingas recebeu o seu último disco “É Luanda” um dia antes da sua morte. Tê-lo-á recebido de sorriso aberto, o mesmo sorriso com que agradecia a Luanda, a sua cidade, cada tijolo utilizado na construção da sua vida, da sua carreira como arquitecto e da sua carreira como músico; cada amigo, cada admirador. E admiradores teve-os André muitos, o que o levou a saudá-los na dedicatória do seu novo disco. “Saudação especial a todos os jovens angolanos intérpretes das minhas canções: o meu muito obrigado por me estimularem tanto”. E é enorme a lista de nomes citados na dedicatória que vem no disco, uma lista que por si só fala da forma como André pertenceu às pessoas e como estas lhe pertenceram também. André trata-os pelos “nomes de casa” e por outras formas carinhosas como “primo maior”. Mas o carinho era recíproco, André Mingas era tratado por eles como “mano miúdo” e Índio. Para os sobrinhos, na boa tradição africana, André Mingas era apenas o pai.
Ao menos num aspecto a morte não traiu o músico por completo, deixou-o ver a sua obra última, trinta anos depois de “Coisas da Vida”, um disco que, para muitos, veio abrir uma nova era na música angolana, dando-lhe um forte empurrão para a sua internacionalização. Voltando a Reginaldo Silva, “com o “Coisas da Vida” aprendemos a detestar a mediocridade das letras que continuam a povoar a maior parte das músicas angolanas.
Uma família de Angola
Ou porque Ruy Mingas foi embaixador e antes secretário de Estado, ou porque Saidy Mingas foi cantado como herói nas músicas dos primeiros anos da Angola independente. Ou ainda porque o próprio André chegou a assessor da Presidência da República, depois de ter sido vice-ministro da Cultura, a família Mingas é daquelas que os angolanos conhecem. Quanto mais não fosse pelo seu papel na formação de milhares de jovens. Amélia Mingas, irmã de André, é antes de tudo conhecida como professora, como é hoje a sobrinha Ângela e como o foi o próprio André. Jorge, Francisco, Ruy, Amélia, Saidy, Júlia, José Norberto, Rosa, Ambrosina e Luís são os nomes dos irmãos do arquitecto que se entregou ao mundo pela música.
MINHA MULHER, MEU REI
Ayhame Mingas, o filho de André, tratava o pai por”meu rei”. Neste particular André soube fugir da imagem habitual do africano artista e boémio. Ayame é filho único nascido do “amor absoluto cantado em prosa e poesia” por André Mingas, assumem os familiares, por Bety, a “minha mulher” como a namorava André por mais de trinta anos.
A VIDA ATÉ AO FIM
Profundo sentimento de gratidão para com os meus médicos e amigos Raul Cutaite, Buzaide e toda a equipa do Sírio-Libanês, pela entrega e toda a competência com que cuidaram de mim”. Esta passagem está entre os agradecimentos constantes na nota de dedicatórias que acompanha o último disco de André Mingas, ainda não lançado mas que a família já decidiu que colocará no mercado. “…pela entrega e toda a competência com que cuidaram de mim”. Como os grandes homens também André deixou aqui um enigma: “cuidaram”. Era André a despedir-se, ou um André que acreditava ter vencido o cancro?
A VIDA COMEMORADA NUM MUFETE
“Viemos para homenagear o teu percurso de vida. Sim, André! Mais do que a morte – mera circunstância biológica – é a vida que tu viveste que nos reúne aqui, hoje!”. As palavras são de Archer Mangueira e José Pedro de Morais (Liderança). São palavras que cabem na tal luz que é o sorriso de André Mingas. Uma luz que foi capaz de fazer dos familiares os seus primeiros fãs e de trazer os fãs para uma espécie relacionamento chegado, quase familiar, ou como conhecidos de longa data. E um homem assim tem nos olhos e no sangue aquilo que a arte, apenas a arte, esta forma de estar na vida e passar a vida a redesenha-la, dá a alguns escolhidos. André Mingas foi arquitecto, compositor e músico, sementes mais que suficientes para ter um percurso político sem a imagem do politiqueiro cru. Ele não sabia viver fora da arte que era a sua vida.
O mufete que André servia em sua casa, onde não iam apenas os muito próximos, sabe-se lá o que era ser próximo para um homem como André, servia-o com a “força do carácter, energia irradiante, a facilidade no relacionamento”. Como escreve Archer. Aliás, o mufete de André acabou por ser servido em música, numa “mufetada” em que convidou todos os angolanos e que estes ainda hoje cantam.
Os homens que amam a arte não cabem no mundo das fronteiras, raças e ideologias. Nem sequer no tempo que as suas vidas percorrem. André repetia: “Eu sou um Homem do mundo moderno, estou definitivamente comprometido com o futuro e não adio”. E o mundo não adiou o seu reconhecimento, aceitou-o como um daqueles que vêem dar um toque de beleza à nossa existência. “A humildade era em ti uma grande virtude, e, a frontalidade e transparência um carácter exemplar de invejar, de um carisma invulgar, de uma simpatia exemplar. Sai do nosso seio um apreciador nato do belo, que descrevia na musicalidade da arte o bem do saber, e cantava o amor como ninguém. Combatia sem qualquer receio a mediocridade na construção e era defensor acérrimo da modernização das cidades e proclamava os valores da nossa cultura com mestria”. Era assim que o viam Archer Mangueira e José Pedro. E assim o registaram numa carta redigida em nome dos “amigos do coração” no dia do funeral.
Homenagem dos funcionários da Presidência da República
Sua Excelência
José Eduardo dos Santos, Presidente da República,
Excelências, prezada família do malogrado André Rodrigues Mingas Júnior, minhas senhoras e meus senhores,
Em nome dos Órgãos Auxiliares do Presidente da República, coube-me o doloroso dever de pronunciar este elogio fúnebre em homenagem àquele que em vida foi André Rodrigues Mingas Júnior, Secretário do Presidente da República para os Assuntos Locais.
Nesta hora de pesar, é com bastante emoção que recordamos o amigo e colega, sempre disponível para prestar a sua colaboração e enriquecer os nossos debates, contribuindo com a sua criatividade para o êxito das nossas responsabilidades.
Estas palavras não são de mera circunstância. Elas correspondem ao que sentimos sobre a personalidade do falecido e à memória que todos temos dele. Era uma pessoa agradável de conviver, de trato simpático, culto e muito educado. Era igualmente de uma grande sensibilidade humana e intelectual e dotado de muito bom sentido de humor.
Prezava muito o conceito de família, e fazia questão de frisar constantemente a forte relação conjugal com a Bety, sua esposa, com o filho Aihame Mingas e com o seu netinho, o Noah. O André dizia-nos que tinha como referências a educação que herdara dos seus pais, tios, avós e demais familiares., Lembrava-se sempre dos ensinamentos, da cultura, das qualidades humanas e políticas do seu pai, André Rodrigues Mingas, dos seus tios João Brás Van-Dúnem, José Vieira Dias Van-Dúnem, José Vieira Dias (Tio Zé Mudo), Mateus Vieira Dias Van-Dúnem, Sinclética dos Santos Torres, Domingas Torres Vieira Dias (Tia Guinhas), Jofre Van-Dúnem e Liceu Vieira Dias.
Deste último afirmava ser fã, não só pelos seus reconhecidos dotes musicais, mas também pela sua personalidade e trajectória política, granjeando a simpatia e a admiração dos seus parentes mais novos. Inscreveu-se, com mérito próprio, numa linhagem de grandes músicos à qual pertence também o seu irmão Rui, e teve uma carreira musical fulgurante e brilhante, com canções que se tornaram verdadeiros clássicos dos nossos dias. Ele foi também um arquitecto do cancioneiro nacional, muito preocupado com a qualidade estética e com a formação da arte da música desde cedo nas crianças.
Naturalmente, o nosso colega também nos falava com tristeza e amargura do desaparecimento dos seus irmãos Saydi e Zé, numa data que considerava que devia ser esquecida. Apesar disso, não guardava rancores e notava-se o esforço que fazia para compreender as circunstâncias em que morte dos seus irmãos ocorreu.
André Mingas era um arquitecto muito comprometido com a ética e a deontologia profissional, mas também corajoso e arrojado nas soluções que encontrava a nível da urbanização para tornar o nosso país mais belo e mais humano. Na sua cabeça fervilhavam mil e uma ideias, que ele queria traduzir em projectos em prol do desenvolvimento do país e do bem-estar dos angolanos.
Alguns desses projectos e ideias, se um dia forem concretizados, tornar-se-ão autênticos ‘ex-libris’ da nossa capital, tendo em conta a qualidade, a inovação estética e a criatividade dos mesmos. Deixa, no domínio da arquitectura e das soluções para os problemas habitacionais e de integração social, uma grande obra, se bem que ainda pouco conhecida, mas que certamente o há-de eternizar.
Não nos podemos esquecer da sua preocupação em clarificar os conceitos no domínio da arquitectura, corrigindo e teorizando. Foi um dos que mais se empenhou em precisar o que são as novas centralidades.
Homem discreto e bom, sempre com um sorriso nos lábios, sofreu com estoicismo sem nunca ter feito sentir aos seus colegas e colaboradores de trabalho a dimensão da sua doença. Era de um optimismo e de uma força impressionantes e tinha muita fé nos destinos do nosso país.
Era sua convicção que, pela natureza do seu povo, Angola sairia da situação de subdesenvolvimento e de desigualdade social mais depressa do que as outras nações africanas. A morte, infelizmente, privou-nos prematuramente da sua energia e saber, deixando um vazio difícil de ocupar.
Perdemos um amigo, um irmão, um camarada.
Repousa em paz, André!
A LEI DA VIDA
“Não posso dizer que não aceito, pois é assim a lei da vida”. Quem o diz é Bochecha, um sobrinho. “Hoje, amanhã e depois de outros carregados amanhãs, não sei e nem saberei como fazer sem ti, não conheço e tenho receio dos caminhos no escuro da vida e sem qualquer esperança de luz que venha do teu sorriso radiante e contagiante”. Mas é a Lei da vida, disse-o bem o sobrinho de André. Afinal, tal como os familiares terão de viver novos dias sem a voz e a presença de André Mingas, também os angolanos ficarão para todo o sempre sem novidades por ele cantadas, sem mais um convite seu para um mufete. Ao menos “Coisas da Vida” e “É Luanda” são marcas a sinalizar a passagem por este mundo de um homem de “bem-querer” e de quem se não lembrará de uma dia de pesar, porque disfarçados num sorriso gentil.
COM A SANTA ANA
A 17 de Outubro de 2011 foi a enterrar, no cemitério de Santana, em Luanda, André Mingas, conhecido músico e arquitecto, falecido em São Paulo, Brasil, vítima de um cancro. O funeral acabou por ser um momento de consternação e de reconhecimento pelo valor da Obra de André Mingas. Foram milhares os angolanos que se juntaram a família e o acompanharam à última morada, entre os quais o Chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, altos dignitários do Estado, mulheres e homens da cultura, antigos alunos e admiradores.
Dionísio Rocha
O que representa a morte de André Mingas?
A perca que nos deixa é irreparável. A perca de um indivíduo multifacetado, incentivador da juventude. Embaixador da música angolana no mundo inteiro
Qual é a dimensão da sua morte para a cultura nacional?
A dimensão da ausência que sentimos é muito grande. André Mingas ultrapassou fronteiras. Trata-se de uma mais-valia relacionada com os países de língua oficial portuguesa e não só. A dimensão teria de ser avaliada em várias categorias: André Mingas, o músico, o politico, o arquitecto, o professor e o amigo com aquele sorriso marcante, brilhante, com cor de alegria.
Esteve no cemitério?
Para além de ser familiar de André Mingas, também me foi recomendada a tarefa de Mestre de Sala durante o funeral. Eu tive como função chamar as pessoas para o acompanhamento próximo da urna a sepultura.
Como define o “Cantor André Mingas”
André Mingas foi um lutador incansável na reabertura dos centros culturais.
CALABETO
O que representa a morte de André Mingas?
Seu desaparecimento físico cria, naturalmente, um vazio para os seus familiares, na medida em que ele era pai, esposo e irmão. É a perca de um elemento da vida.
Qual é a dimensão da sua morte para a cultura nacional?
Sua inteligência e integração na música nacional não será fácil de recomposição como sabemos. Não tive nenhum trabalho conjunto com o André Mingas, mas diversas vezes tive a oportunidade de dividir o palco com ele, actuando antes ou depois de mim, no nosso país e pelo mundo. Foi sempre um momento de bravura e alegria vê-lo como expressava os seus textos.
Esteve no cemitério?
Estive no velório. Por motivos de saúde não consegui ir ao cemitério.
Como define o “Cantor André Mingas”
Eu resumo dizendo que André Mingas foi um grande homem. O sorriso nos seus lábios não era de carácter superficial mas substancial, real da sua pessoa. Um cantor com uma alegria e uma voz incansável, com canções muito, muito lindas.
GISELA SILVA
O que representa a morte de André Mingas?
Como uma cantora muito jovem, em relação a André Mingas, não tive a oportunidade de acompanhar a sua carreira que foi de grande mérito. Nós, cantores, temos a oportunidade de mantê-lo vivo, cantando a suas obras que ficarão para sempre.
Qual é a dimensão da sua morte para a cultura nacional?
Estamos todos de luto e neste contexto deveríamos criar um ângulo para podermos homenageá-lo com um grande show. E não esquecer de mostrar à nação, ao mundo e à sua família que a sua vida não foi em vão.
Esteve no cemitério?
Eu não pude ir ao cemitério porque estava fora de Luanda. Eu dou aulas no Instituto de Formação de Professores do Huambo. Todas as segundas e terças encontro -me no Huambo a trabalhar.
Como define o “Cantor André Mingas”
André Mingas foi um elemento da paisagem cultural angolana com um grande contributo para muitas gerações.
FILIPE MUKENGA
O que representa a morte de André Mingas?
Eu estou triste demais para poder comentar esta ocorrência e até já estou a tentar esquecer. O homem já esta sepultado. Tento esquecer mas não consigo. Estou muito triste.
No ventre da nossa mãe Angola abriu-se uma ravina músico-cultural
Qual é a dimensão da sua morte para a cultura nacional?
Como intercâmbio nas áreas das ideias musicais eu aprendi com o André a utilização dos acordes invertidos que vêm do Jazz. André era uma pessoa muito criativa.
Esteve no cemitério?
Não tive a oportunidade de participar no funeral. O André Mingas.
Como define o “Cantor André Mingas”
André Mingas deixou um vazio no music-hall nacional. Era um artista engajado na exploração das novas sonoridades inspiradas no Jazz.
Angola perde assim um músico que via a nova música de Angola numa perspectiva internacional.
O homem que comandava a banda
André Rodrigues Mingas Júnior, aliás, André Mingas, nasceu em Luanda, a 24 de Maio de 1950. Filho de André Rodrigues Mingas e de Antónia Vieira Dias Mingas, deu os primeiros passos no mundo da música graças à influência do irmão Ruy Mingas, ele também músico, e pela genialidade de Liceu Viera Dias.
Porém, escreveu o Apostolado, publicação católica, com o seu talento indiscutível e sentido de modernidade começou desde muito cedo a criar uma nova sonoridade musical em Angola. Lançou o seu primeiro álbum “Coisas da Vida” há trinta anos. “Coisas da Vida” continua a ser actualmente uma das principais referências da moderna música angolana, misturando ritmos locais com sonoridades do jazz e do rock, criando a ideia de uma espécie de “semba-jazz”.
André Mingas, tal como Filipe Mukenga e Waldemar Bastos, fazem parte da geração de ouro de músicos de excelência que emergiu e teve sucesso nos anos 1970 e 1980.
O autor de “Mufete” foi vice-ministro da Cultura e durante o seu mandato criou a Sociedade Angolana de Direitos de Autor denominada SADIA. Segundo um quadro do Ministério da Cultura, André Mingas foi o homem da massificação cultural, da ideia do Instituto Médio (em construção) e do Instituto Superior de Artes e Cultura e Museu de Arte Contemporânea.
André Mingas terminou os seus estudos na Universidade Agostinho Neto e posteriormente na Universidade Técnica de Lisboa, onde fez um mestrado. Foi Arquitecto, Mestre em Arquitectura e Urbanismo, Secretário para os Assuntos Locais do Presidente de Angola, Vice-Ministro da Cultura, formador de quadros em Portugal onde foi Professor do 5º ano de Arquitectura da Universidade Lusófona de Lisboa.
José Kaliengue
26 de Outubro de 2011